Frota clandestina entre Corumbá e SP tem se tornado a principal rota do tráfico de drogas no país
Instituições reconhecem que a rede clandestina opera em escala nacional e tem se tornado um desafio logístico e jurídico
13 NOV 2025 • POR Redação do Capital do Pantanal com CG News • 11h02Os 2.070 quilômetros entre Santa Cruz de la Sierra e São Paulo formam hoje a espinha dorsal de uma malha rodoviária clandestina que abastece o mercado de cocaína operada pela principal facção criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital). Usando pessoas como 'mulas', o sistema funciona porque combina infraestrutura paralela, blindagem judicial e uma fiscalização que admite não ter meios para fechar o cerco.
O esforço conjunto para impedir o tráfico de drogas no corredor Corumbá - São Paulo reúne integrantes da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), da Receita Federal, da Polícia Federal, e das polícias Civil e Militar de Mato Grosso do Sul. As instituições reconhecem que a rede clandestina opera em escala nacional e tem se tornado um desafio logístico e jurídico.
Em entrevista ao Campo Grande News, Helberth Teixeira dos Santos, chefe do escritório da ANTT em Campo Grande, disse que o trajeto entre Corumbá e São Paulo concentra um fluxo diário de ônibus que atuam fora do sistema regular. “É um corredor intenso, que mistura transporte de passageiros com atividades irregulares. A fiscalização existe, mas o volume e a estrutura dessas operações tornam o enfrentamento difícil”, disse.
A percepção é compartilhada por Greison Ferreira de Sousa, chefe da Divisão de Repressão da 1ª Região Fiscal da Receita Federal, em Brasília, que destaca a necessidade de atuação coordenada.
“A Receita Federal tem intensificado ações no combate aos crimes transfronteiriços, seja com operações locais ou com apoio da Divisão de Repressão. Em 2025, registramos aumento de 110% nas apreensões de drogas em relação a 2024”,
Greison observa ainda que o aumento do fluxo de pessoas para São Paulo em ônibus clandestinos se tornou um indicador preocupante: “Todos os dias saem de Corumbá entre nove e dez ônibus clandestinos com destino a São Paulo. Em conjunto com nossos parceiros, conseguimos intensificar a fiscalização, mas o número de viagens mostra que o sistema segue ativo e lucrativo.”
Uma frota invisível dentro do sistema legal
A operação, descrevem os fiscais, é simples e eficiente: os ônibus embarcam em Corumbá passageiros que se original de Santa Cruz de Lá, na Bolívia, e seguem direto ao Brás — Terminal do Bresser, na capital paulista, ponto de desembarque conhecido entre operadores clandestinos.
“Eles não param em rodoviária; só para refeição em pontos combinados”, relatou outro servidor. Em dias normais, quatro a cinco ônibus partem de Corumbá e o mesmo número sai de São Paulo; em picos, ultrapassam dez saídas diárias. O fluxo contínuo cria uma linha paralela, com paradas e pontos de apoio mapeados, fora do alcance do controle estatal.
A malha opera em quatro camadas: empresas autorizadas, linhas internacionais, operadores clandestinos com base jurídica frágil e os chamados “puros-sangue”, ônibus registrados em nome de bolivianos com CPF brasileiro, que não constam em nenhum cadastro da ANTT. “Os puros-sangue não têm autorização; não emitem lista de passageiros; fazem o trecho sem qualquer tipo de licença”, explica Teixeira. Outra manobra comum é a inclusão temporária de veículos na frota de empresas que detêm liminares judiciais, o que confere aparência de legalidade suficiente para atravessar abordagens.
Em 2024, segundo dados oficiais da ANTT, 43,6 milhões de passageiros viajaram em linhas regulares de ônibus interestadual, o equivalente a cerca de 948,7 mil viagens de veículos. A tamanho da rede legal ajuda a dimensionar a sombra sob a qual a malha clandestina se esconde e se mistura, operando sem controle fiscal, trabalhista ou criminal. Isso ajuda a explicar porque no geral a fiscalização só alcança 5% da droga que entra no país. Só agora, com ações conjuntas, inteligência e cão farejador é que a ampla malha dos ônibus clandestinos está ganhando visibilidade dos órgãos de controle. Mas não há política pública específica em Mato Grosso do Sul, nem em São Paulo e menos ainda integração entre os dois governos estaduais.
As liminares que impedem apreensões são pedidas majoritariamente em Brasília (TRF-1) ou em São Paulo (TRF-3), exatamente as jurisdições que abrangem o trecho Corumbá–SP. “Eles sabem onde pedir; a decisão vale para o país todo quando vem de Brasília. É estratégico”, observa um fiscal. Na prática, a autoridade administrativa fica limitada: ao abordar um veículo amparado por decisão judicial, a ANTT não pode efetivar a apreensão e deve seguir o teor da liminar, mesmo diante de irregularidades evidentes.
O risco da clandestinidade
Os ônibus clandestinos são também um risco de morte sobre rodas: não passam por inspeção técnica, não têm tacógrafo padronizado e trafegam acima de 110 km/h. “Para combater, requer recurso, requer efetivo. Eles têm estrutura montada para dificultar nosso trabalho”, diz Teixeira. A precariedade é parte do modelo: economiza custos, reduz rastreamento e acelera o transporte.
As autoridades da fronteira reconhecem o elo entre o transporte ilegal e organizações criminosas, embora falte estrutura para provar a cadeia de comando. Para investigadores, a malha clandestina favorece a facção paulista, que depende de rotas discretas, juridicamente blindadas e com recepção logística em São Paulo.
Em nota, a direção da ANTT em Brasília informou que “fiscaliza exclusivamente a prestação do serviço de transporte interestadual ou internacional de passageiros” e que realiza “ações periódicas em terminais rodoviários e nos principais corredores logísticos, em pontos estrategicamente definidos”. Segundo o comunicado, as ações “verificam as condições dos veículos, o cumprimento de gratuidades e os padrões de segurança, com foco na segurança dos passageiros e na boa prestação do serviço”. A agência reforçou ainda que não tem competência criminal direta, razão pela qual “atua em cooperação com outros órgãos de segurança”.
Na prática, essa fragmentação burocrática e a falta de uma política pública específica para a modalidade, produz o vácuo que o crime explora: a ANTT fiscaliza o ônibus, mas não o que carrega; a PF e a Receita combatem o tráfico, mas não o transporte. As decisões liminares, as empresas de fachada e os “puros-sangue” completam o círculo da impunidade.
O resultado é uma cadeia completa: ônibus clandestinos transformam-se em vetores de tráfico e exploração humana. Desembarques no Brás alimentam, além do mercado de entorpecentes, redes de trabalho escravo e escoamento de muamba. Do lado jurídico, o trânsito de liminares e a fragmentação entre agências produzem uma blindagem legal para o veículo, não para a pessoa.
A solução, segundo técnicos da ANTT, da Receita e demais órgãos envolvidos, passa por reforço de efetivo, integração entre agências e revisão das decisões judiciais que travam a fiscalização. “Sem coordenação entre Judiciário, ANTT, PRF e PF, a malha clandestina continuará rodando com eficiência criminosa”, avaliou Helberth Teixeira dos Santos.
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