A onda do governo digital veio com tudo. Em todos os cantos do poder público, só se fala em processo digital, que iria dar eficiência e modernidade ao serviço público nos três poderes. No Judiciário, já faz tempo que tudo é digital, conforme a lei 11.419/2006. Ocorre que o tempo passou e não resultou em rapidez nos processos e tudo é lento e demorado.
Fato interessante que veio como rescaldo dessa onda digital são as licitações digitais, contratos com a administração pública, escrituração eletrônica e outros serviços digitais pertinentes. Sistema eletrônico dos Registros Públicos (Serp), documentos eletrônicos, provas digitais, contratos eletrônicos, contabilidade eletrônica, sistemas diversos PJe, Produdi, e-Doc, e-Proc, e-STF, e-STJ, e-Saj, são alguns dos itens sobre o tema digital, que se alteram como novos sistema, novas adaptações, e, é claro, mais custos, novos contratos públicos e licitações muitas vezes sem disputa, face à especialidade do programa informático, novo aplicativo e novas ferramentas digitais que se renovam a todo momento.
Nesta toada, surgem os chamados criminosos no mundo digital, os crimes de informática, com ação de grupos especializados na prática de crimes específicos, os chamados hackers e crackers, insiders, lammers, phreakes, spammes, que usam técnicas diversas e vírus de contaminação como os conhecidos trojans e worms, e os crimes no ambiente virtual como cyberbullying, pornografia de revanche, fake news e detox digital e o submundo da dark web. O tema é extenso, a linguagem é específica e atinge todos nesta era da revolução digital. Se seu celular ou computador estiver conectado à internet, então é uma vítima em potencial. Recentemente, criminosos virtuais invadiram o sistema bancário vinculado ao Banco Central e teriam desviado 800 milhões de reais, o que demonstra a fragilidade do mundo digital.
Diante do governo digital (Lei 14.129/2021), há uma tendência e praticamente uma imposição para que tudo na administração pública seja digital, como se isso resolvesse todos os problemas, e, como diz a lei no artigo 1º, traz “regras e instrumentos para o aumento da eficiência da administração pública, especialmente por meio da desburocratização, da inovação, da transformação digital e da participação do cidadão”. Neste contexto de modernização e onda digital, contratos estranhos e obscuros orbitam no serviço público sem o entendimento exato de que se tratam, como são desenvolvidos, os valores pagos pelo poder público e as entranhas desses contratos digitais, que têm ferramentas, denominações, técnicas e linguagens que só os entendidos da Tecnologia da Informação compreendem.
Contratos sobre capacidade de armazenamento, bytes, kilobyte, megabyte, gigabyte, mordidela, data warehouse, redes de provedores de serviço de longa distância (WAN), redes em nuvem, infraestrutura de rede, firewalls, switches e access points. Manutenção de computadores, suportes técnicos, aditamento de valores tornaram-se comuns no setor público, com valores milionários sem contestação adequada e conhecimento público devido à especificidade desses serviços digitais. Estamos acostumados a questionar, reclamar e há debate público na imprensa, nos casos de obras públicas com defeitos, asfalto com buracos, pontes caídas, casas populares com rachaduras, falta de manutenção em prédios públicos, falta de medicamentos em postos de saúde ou demora no atendimento, mas não há esta mesma percepção com os contratos digitais milionários. É muito provável que a maioria da população não tem noção do valor de um token, desconhece o sistema e assinatura digital, mesas digitais, ou valores sobre capacidade de armazenamento de arquivos, e-mails ou nuvem, ou valores de software (programa de computador), e muito menos, detalhes sobre o código-fonte e código-objeto, algoritmos, e mensurar o valor de um software vendido a administração pública, que pode valer milhões de reais ou mesmo encontrado gratuitamente na internet.
Empresas especializadas em serviços digitais são contratadas para operacionalizar e-mails institucionais, aplicativos, sites e programas governamentais e manipulam os dados sensíveis do poder público, com risco de vazamento de informações em prejuízo da administração pública. Fato é que há terceirização e entrega de dados do setor público para gerenciamento por empresas privadas, ocultas do público e da mídia, mas que abocanham milhões de dinheiro público, com dificuldade de controle social. O risco de vazamento de informações é evidente, apesar dos mecanismos de segurança e proteção previstos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018).
Cabe aos senhores vereadores, no âmbito de atribuições legais no município, fiscalizar tais contratos digitais, valores, prazos, necessidade, etc., e aos deputados estaduais os contratos do governo estadual, bem como o controle externo do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Raros são manifestações desses políticos representantes do povo, uma fala, um questionamento, ou uma solicitação de informação sobre tais contratos, sendo que a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), prevê que cada ente público mantenha um “sítio eletrônico oficial: sítio da internet, certificado digitalmente por autoridade certificadora, no qual o ente federativo divulga de forma centralizada as informações e os serviços de governo digital dos seus órgãos e entidade” (Art.6º, LII).
Não se trata de voltar à máquina de escrever. O tempo traz inovações, novas ideias e novas tecnologias. Contudo, é preciso atenção nesses contratos digitais muitas vezes sem licitações, com valores exorbitantes, gastos com dinheiro público, e ainda entender como estas empresas privadas controlam, manipulam dados, e interferem no serviço público, havendo, inclusive, perigo ao próprio gestor público, que entrega dados e sistemas próprios de serviços públicos a estas empresas privadas que já estão trabalhando usando prédios e aparatos públicos. Um aplicativo, um programa de computador, vendido a peso de ouro para o governo de eficácia duvidável, por vezes pode se encontrado gratuitamente no mundo digital. Tais aplicativos, repletos de marketing, têm ferramentas propositalmente colocadas para deixar o gestor público refém das atualizações e consequentemente de aditamentos contratuais, elevando os valores contratuais iniciais.
Não é incomum o cidadão procurar informação de um serviço público, e o atendente é um funcionário de uma empresa privada trabalhando dentro de um órgão público, manuseando dados sensíveis, com se fosse uma funcionária de call center (canal de atendimento do cliente), numa mistura entre o público e privado, lembrando o patrimonialismo, ligado ao nepotismo, de tempos de outrora na Administração Pública no Brasil.
No Mato Grosso do Sul, o governo estadual criou o “MS DIGITAL” onde a pessoa deverá baixar o aplicativo para, em tese, ter acesso a serviços como: Carteira Funcional Digital, Carteira do Estudante, Carteira de Identificação Desportiva, Cartão de Vacinal Digital, Cartão do Doador de Sangue e Passe Livre Intermunicipal, e, ainda, segundo o site do governo, 90 serviços em áreas como Saúde, Trânsito, Segurança, Servidor Público, Meio Ambiente e outros, inclusive débitos de veículos, dados de arrecadação de tributos estaduais, e antecedentes criminais. A funcionalidade destes aplicativos disponíveis são constantemente questionáveis, a exemplo do Aplicativo GOV BR do governo federal, com várias falhas, lentidão, e exigindo do cidadão acesso à internet, e atualizações, e o risco de ataque hacker.
Se a onda digital veio para ficar e é importante para modernização dos serviços públicos, essencial é também fiscalizar as licitações desses contratos de forma profunda e com conhecimento técnico para questionar e analisar o real interesse público, ou se estão sendo usados de forma indevida como um engodo digital.
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